Sob a perspectiva de um rasgo

Um elefante em tamanho descomunal anda sobre o mar. Tigres saltam da boca de um peixe. Assim descreve-se a obra surrealista de Salvador Dalí. Pelo ponto de vista pragmático, nada do que foi narrado é possível. Mas como um verdadeiro artista, Dalí coloca em questão o que se conhece como real. Para ele, há um mundo surrealista, em que são possíveis tigres irromperem de peixes.
Deleuze e Guattari, ambos filósofos, disseram que os artistas e pensadores em geral buscam promover “rasgos” no guarda-sol. Obviamente é uma metáfora, tal qual a pintura de Dalí. O guarda-sol representa a realidade, tudo aquilo em que o sujeito se apóia, se debruça para que seja possível organizar o pensamento.
Por exemplo, quando tentamos entender um problema matemático ou até mesmo um acontecimento do cotidiano. Antes se organiza os fatos, tudo o que ocorreu para que seja possível chegar a uma conclusão e o assunto fica “resolvido”; é um processo empírico. Porém, permitir que tudo seja visto como concluído, determinado, leva o sujeito a se estabilizar totalmente em face da realidade que o guarda-sol abriga e passa a não questionar o mundo a sua volta.
Então, surge a função dos artistas: abrir fendas no guarda-sol, desafiar a suposta realidade que a maioria aceita, e mostrar que há uma escuridão além desse rasgo, no firmamento. A escuridão é tudo aquilo que desconhecemos. O sentido de vida e morte, Deus, amor. A função do artista não é rasgar e mostrar uma outra realidade, como se a dele estivesse certa. Pelo contrário, a intenção é desmascarar aquilo que se diz real e promover o caos, a tentativa de refletir sobre o que está “lá fora”. Certas questões sempre irão precisar de “rasgos”, reflexões. Mas é preciso fazer um adendo: o fato de desconhecer grande parte do mundo não pode trazer ao ser humano a necessidade de ser supersticioso, pois isso causa sofrimento e medo, que não permitem a reflexão.
Sendo assim, o artista ensina que nunca saberemos tudo, tal qual o filósofo Sócrates pensava, “Só sei que nada sei”. Melhor ainda, em vez de pensar na frase do pré-socrático, a ensolarada música do Kid Abelha diz o mesmo. “Nada sei dessa vida. Vivo sem saber. Nunca soube, nada saberei. Sigo sem saber”. É possível ter em comum com Salvador Dalí muito mais do que se imagina. A loucura é aceitar a realidade exatamente como ela se mostra. O bom senso é permitir que tigres irrompam de peixes.
Marina Franconeti Ver tudo
Escritora e mestranda na USP em Filosofia, na área de Estética, pesquisando Manet e o feminino. Ama pintar aquarelas, descobrir a magia oculta nas tintas e na prosa do mundo.
“A loucura é aceitar a realidade exatamente como ela se mostra. O bom senso é permitir que tigres irrompam de peixes.”
E quem conseguir ousar ter olhos de ver, conseguirá fazer tigres irromper de peixes…
Viva titio Sócrates que nada sabia! E viva quem se permite aprender!!
Viu como eu li?!?! hahaha
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É o que os Iluministas vem a fazer, iluminar os pensamentos e a realidade vista. Talvez até tirar o povão da caverna, mas o objetivo não é mostrar uma realidade completamente diferente, a princípio, porém passar a questioná-la até que aos nossos olhos se torne, talvez, diferente. Enfim, quando for à Praia, pinte tigres com peixes furando o guarda-sol! xP
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